A POLÍTICA PORTUGUESA NA WIKIPEDIA

Artigo publicado do jornal Público e no Abrupto, uma forte critica à wikipedia feito pelo político José Pacheco Pereira.

A célebre Wikipedia, a enciclopédia feita pela colaboração de milhares de voluntários, é apontada como um dos grandes produtos da Rede, um dos exemplos das virtualidades da acção colectiva, e da interacção em linha. À volta da Wikipedia circula uma enorme ganga ideológica, como aliás acontece também com outros produtos na Internet, em que se reciclam velhas utopias políticas igualitárias com ornamentos tecnológicos de ponta. A Wikipedia seria o exemplo de como não seria necessário o “saber” dos “sábios” e “especialistas” que seriam substituídos por uma multidão anónima altruísta, trabalhando de livre vontade, não procurando nem fama, nem dinheiro e que conseguiria fazer melhor sem a cobiça e o mercenarismo dos “poderosos” da ciência. A utopia igualitária e demagógica na Rede, que encontra na Wikipedia um dos seus melhores exemplos, mostra como para uma geração de internautas é mais importante o método igualitário do que a qualidade final do produto cíentifico.

Não sobram dúvidas que a Wikipedia é um extraordinário resultado da acção colectiva, com a sua gigantesca dimensão multilínguistica (que inclui uma versão em Klingon, a língua dos extraterrestres da série Star Trek),
Image:Klingon sentence a.GIF

com centenas de milhares de entradas, muitas das quais são aceitáveis, principalmente em disciplinas como a matemática, a biologia ou a química, onde é mais fácil estabelecer critérios de rigor verificáveis e as entradas não dependem de uma narrativa escorreita. O problema é a crença igualitária de que a “lei dos grandes números”, – colaborador que corrige colaborador que corrige colaborador, – acabaria por originar um resultado rigoroso e cientificamente aceitável. Na realidade, a enciclopédia, sem peer-review e sem edição, está cheia de erros, incorrecções, artigos doutrinários passando por entradas enciclopédicas, que a tornam imprestável para qualquer trabalho sério. Como os motores de busca tendem a colocar as entradas da Wikipedia em primeiro lugar nas pesquisas e muitos utilizadores ignoram este defeito metodológico essencial, os seus artigos viciados acabam por passar por “saber” e ser citados sem precaução. A Wikipedia tende a tornar-se o maior problema da pesquisa em linha para trabalhos escolares, académicos e jornalísticos.

O problema é ainda mais grave nas entradas no âmbito das ciências sociais e da história, em particular nos chamados “assuntos correntes”, onde o intenso confronto ideológico e político é transportado para a Wikipedia. Esta acaba por ser escrita pelos militantes das causas, dando origem a entradas hibrídas entre o panfleto partidário, a história “oficial” e o ajuste de contas, já para não falar nos erros dos voluntários amadores. Muitas vezes o confronto entre visões militantes é transportado para o interior de um texto que fica uma manta de retalhos de visões politizadas. Os artigos da Wikipedia em português sobre a política e a história contemporâneas são um bom exemplo de tudo isto, são de uma má qualidade flagrante, cheios de erros, incorrecções, posições e contra-posições propagandisticas e ideológicas.

Há um número considerável de entradas respeitantes à política portuguesa na Wikipedia, mas logo, à cabeça, a marca do colaborador militante é evidente na selecção do que é posto em linha ou não. Proliferam na Wikipedia artigos extensos e detalhados sobre partidos e homens políticos das franjas extremistas e apenas entradas esquemáticas sobre os partidos e políticos moderados. Por exemplo, ninguém se deu ao trabalho de escrever uma biografia de António Guterres, para além de um pequeno esquema. O mesmo acontece no equilíbrio nas entradas sobre partidos, com o PCP com parte de leão num extenso texto, o BE bem representado e o PSD e o PS apenas com entradas mínimas. Pode-se sempre dizer que isto representa o interesse dos partidos respectivos na Wikipedia e na Rede, mas uma enciclopédia no seu equilíbrio e ponderação não pode estar dependente de militantes que pensam que Francisco Louçã é mais importante do que António Guterres na história contemporânea portuguesa.

Lendo-se os artigos sobre os partidos verifica-se como há a preocupação de os tratar de forma elogiosa e “politicamente correcta”. Por exemplo, o BE é apresentado como resultado de processos de crítica “ao chamado «comunismo» ou «socialismo real», quando se sabe que a referência comunista permanece viva na UDP, e no PSR nas versões maoista e trotsquista. O mesmo pode ser dito desta frase idílica:

“O Bloco foi crescendo. O acordo entre os três partidos foi dando lugar a uma forma de organização interna democrática, cada vez mais baseada na representação dos aderentes e menos no acordo de equilíbrio partidário. “

No texto sobre o PP e as legislativas de 2005 há este primor de auto-elogio:

“O CDS partia sozinho e com grandes expectativas para as eleições legislativas. Os seus ministros eram conhecidos pelo seu rigor e convicções, e o partido lançou-se para metas ambiciosas.” (Sublinhados meus).

Na entrada sobre Paulo Portas atribui-se a Manuel Monteiro “um programa conservador e eurocéptico de inspiração populista” e a Paulo Portas “uma curiosa síntese entre democracia-cristã, liberalismo e conservadorismo de inspiração britânica.”

O artigo sobre o PCP, a que já me referi noutro texto apontando grosseiros erros factuais que meses depois ninguém se interessou por corrigir (como a datação absurda de Fogaça como secretário-geral de 1942 a 1961), é um típico exemplo de artigo militante. Nele se reproduzem todos os clichés da propaganda habituais no PCP sem qualquer distanciação analítica, como mostra este exemplo sobre os Estatutos com sublinhados meus:

“Os estatutos do Partido definem-o como sendo um partido político do proletariado e de todos os trabalhadores Portugueses, e como sendo a vanguarda de todos os trabalhadores. Este seu papel resulta da sua natureza de classes, e da sua proximidade com o povo, ganhando assim o seu apoio.(…) O Partido Comunista tem como base teórica o Marxismo-Leninismo, que consiste numa concepção materialista do mundo como uma ferramenta científica de análise social. Estes princípios guiam os objectivos e acções do partido, e permitem-lhe sistematicamente responder a novos desafios e realidades.”

As omissões são também muitas, como por exemplo, a do 25 de Novembro na história do PCP, ou, na escolha de terminologia ideológica, o uso da expressão “fim do Bloco Socialista” para designar o colapso do sistema comunista soviético. A entrada sobre Álvaro Cunhal é identicamente um longo panegírico.
Imagem:Cunhal-alvaro.jpg Imagem:Salazar1933.jpg

No entanto, os artigos sobre o PCP e Cunhal, como o artigo sobre Salazar, mostram também uma das debilidades da construção da Wikipedia, como seja a produção de textos contendo as marcas de uma conflitualidade interna entre militâncias hostis. Nesses artigos, coexistem frases feitas “pelos que querem dizer bem” e por “aqueles que querem dizer mal”. O artigo sobre Salazar, que termina com um capítulo intitulado “Fim de um Homem” (com maiúscula), chega a ter partes completamente confusas e análises em que é forte a presença da propaganda e de lugares comuns que nada tem a ver com a histó
ria, como a que é feita sobre a neutralidade portuguesa na II Guerra onde a “ hábil gestão da neutralidade (por Salazar) trouxe-lhe, no final da guerra, os benefícios da paz sem ter de pagar o preço da guerra.”

O artigo sobre a Guerra colonial é um tipíco exemplo de formulação ideológica a partir da terminologia :

“A expressão guerra colonial está tecnicamente incorrecta já que os territórios ultramarinos portugueses tinham o estatuto de províncias e não de colónias. Igualmente, dado que as operações militares eram consideradas pelas autoridades portugueses como de segurança interna, o termo guerra também não seria aplicável. Por estas razões o termo geralmente utilizado nos meios militares portugueses é o de Campanhas Ultramarinas.”

Não cabe num artigo de jornal a quantidade vasta de exemplos da má qualidade da Wikipedia portuguesa como fonte de trabalho e conhecimento. Os defensores do método da Wikipedia costumam insistir que existe uma “obrigação” de quem encontra erros nas entradas da enciclopédia sem as corrigir. Na verdade, não há qualquer “obrigação” deste tipo, nem a correcção de um ou outro erro resolveria qualquer problema com entradas como aquelas que citei. O problema é mais vasto e mais de fundo. É que se o método colaborativo e interactivo da Wikipedia é um grande instrumento, este só permite segurança cíentifica quando é complementado pela edição dos artigos finais por especialistas. E, mesmo assim, não resolve todos os problemas porque os artigos em áreas de ciências sociais e história exigem coerência narrativa, ou seja um autor (ou autores) de uma redacção final consistente. Os próprios responsáveis pela Wikipedia caminham aliás neste sentido, desiludindo mais uma vez os militantes do igualitarismo utópico.
(No Público de 17 de Março de 2007)

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